quarta-feira, 30 de junho de 2010

Clarice, Por não estarem distraídos

Falando, provavelmente, sobre uma dessas tardes minhas em Porto Alegre, que, como diz um outro livro seu, são "invivíveis" e, por isso, precisam ser escritas.


Por Não Estarem Distraídos

(Clarice Lispector)




Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
 Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles.
Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos!

Até que tudo se transformou em não.

Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas.

Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali.

Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso.

Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos.

Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham.

Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.

Foram então aprender que, não se estando distraído,

o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice, para Carol

Conversando com uma amiga, numa dessas noites em que saímos para resolver a vida, ela me lembrou o conto "Uma Esperança", de Clarice. Eu, que ando encantada pela Clarice romancista, havia, mesmo, esquecido dos seus contos cheios de potência de vida.  Conheci, há algum tempo, a psicanalista Clarissa Pínkola Estés, que também é "cantadora" e escritora. Ela, que há mais de 30 anos atende mulheres, diz, no seu livro "Mulheres que correm com os Lobos" que, algumas vezes, os insights sozinhos já não são capazes de curar e que é preciso, então, atuar diretamente no inconsciente. A tese de Clarissa é a de que os contos são capazes de chegar aí. Cada vez que leio um conto como o da Clarice, sinto, meio intuitivamente, que é exatamente isso que ele provoca em mim: ele atalha caminhos e impacta, surdo, em algum lugar desconhecido.

Uma esperança
                                     (Clarice Lispector)
Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

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Como, geralmente, um conto me lembra uma música, Julieta Venegas e Marisa Monte dão leveza ao peso de Clarice:
http://www.youtube.com/watch?v=Cd2mcbMsoeE&feature=related

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sub species aeternitatis - ou "Poesia de pó de estrelas"

Sub species aeternitatis  (com Demétrio Cherobini)


 I

Sou inteira, poeira estelar
mesmo estes pés, com que me aproximo,
estes olhos de sal com que te miro
hão de deixar-nos

Eu, amante do infinito,
já não creio no que não perdura
e renuncio, erma, a este olhar noturno com que me tentas
à tua pele, ao teu pelo âmbar
e sua transitoriedade

Quero de ti o que há de ficar:
a aura macia com que acolhes meu ser
a palavra com que me acaricias
o segredo da nossa comunhão

Quero de ti a lembrança do perfeito
a negação do tédio
a reinvenção do amor

Aceita de mim este pequeno gesto:
um afago na forma de poesia
com ele meus lábios,
meus gestos,
meus restos,
aceita essa carne, esse corpo, esse instante
celebremos juntos a estrela breve de nossas vidas!

II

Sim, renunciemos ao breve
ao mesmo tempo em que celebramos o breve:
gesto, jeito, gosto, resto, rosto,
o que é manifesto e o que está posto,
o que, em si mesmo, é leve
e se vai com o vento,
o que vive apenas um momento...

Celebremos corretamente
pois um banquete é mais
que a soma dos seus ingredientes
O que parado jaz
façamos com que se movimente
para que as paralelas ideais
possam tocar-se lá (ali) na frente...

É assim aos olhos do eterno:
o que é bruto se torna terno;
o que é feio se faz bonito;
o que é breve prova-se infinito...

E eu, amente do infinito, poeira estelar,
no que não dura, não creio.
Eu vejo o fim, ao ver o meio;
ao ver a gota, eu vejo o mar.
Coloco cada parte em ação:
mente, corpo, carne, coração...
e do que era um indecifrável modo
emerge um organizado todo.

....e para amar o todo em cada parte
será precisa algo mais que arte?

domingo, 27 de junho de 2010

Post de boas vindas

Amigos com saudade e desconhecidos curiosos... o que esperar desse blog recem nascido e nascido de susto, que não a sombra clandestina de sua criadora? E se o dicionário diz-me que é clandestino o que não é oficial, o que não está às claras, o que é feito às escondidas, ofereço-lhes esta exata medida da minha vida: o que até então estava perdido em gavetas, folhas de caderno dobradas há anos, em restos de guardanapos velhos, em livros rabiscados ou em lugares pouco visitados da memoria... Poesias, alguns contos em gestação e o que mais falar de mim e me tocar de modo pouco óbvio.