quarta-feira, 30 de junho de 2010

Clarice, para Carol

Conversando com uma amiga, numa dessas noites em que saímos para resolver a vida, ela me lembrou o conto "Uma Esperança", de Clarice. Eu, que ando encantada pela Clarice romancista, havia, mesmo, esquecido dos seus contos cheios de potência de vida.  Conheci, há algum tempo, a psicanalista Clarissa Pínkola Estés, que também é "cantadora" e escritora. Ela, que há mais de 30 anos atende mulheres, diz, no seu livro "Mulheres que correm com os Lobos" que, algumas vezes, os insights sozinhos já não são capazes de curar e que é preciso, então, atuar diretamente no inconsciente. A tese de Clarissa é a de que os contos são capazes de chegar aí. Cada vez que leio um conto como o da Clarice, sinto, meio intuitivamente, que é exatamente isso que ele provoca em mim: ele atalha caminhos e impacta, surdo, em algum lugar desconhecido.

Uma esperança
                                     (Clarice Lispector)
Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:

- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

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Como, geralmente, um conto me lembra uma música, Julieta Venegas e Marisa Monte dão leveza ao peso de Clarice:
http://www.youtube.com/watch?v=Cd2mcbMsoeE&feature=related

3 comentários:

  1. Eu tenho mesmo é que te encher de beijo, cosa fofa da miga rubia! Ops, não sou mais loira! ehehe.. Guria, assim como Uma esperança nos levou para muito longe, mas também muito perto dos sentimentos e corpo nossos, Ilusión é como bebê, filho de outros: quando vemos está no nosso colo, nos olha e chora. A gente, sem saber o que fazer, se divide entre os sentimentos de querer se livrar 'daquilo' e de querer um só pra si! Ai, ai.. E eu só agora fui descobrir Ilusión e Julieta. Mas isso pq sou boba e não acho tempo para frequentar e ler com calma o blog dos prazeres! Te cuido!

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  2. Que metáfora mais linda essa do bebê de outros. Ví muito de mim (e de ti) nela: o susto do choro, que desperta a vontade do cuidado, o desejo de descobrir-se cuidando e o medo dele, o medo de que cuidado se transforme em dependência, e que dando demais nos esvaziemos...Como resolvemos isso, Carolinda? É possível cuidar sem criar dependência, como a música linda da Marisa "eu tomo conta de você, mas te quero livre também"?

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  3. É linda! Acho que tu estás vivendo e experenciando como resolver estas incógnita. Pediste ajuda para alguma Esfinge?! Da minha parte, estou aqui chorando.. Preciso resgatar Marisa Monte. Música linda e, se tu e a Marisa me autorizam, enviarei ela para alguém que merece tudo o que a vida puder dar e que não mais acompanharei de perto (muito triste pensar que não verei mais aquele sorriso!). Beijos salgadinhos (de lágrimas).

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